"King, com Gandhi e Nelson Mandela, são o ícone de um conflito que colocou os brancos cara a cara com sua herança política mais preciosa, e muitas vezes esquecida, o princípio de igualdade das Revoluções Americana e Francesa, que agora entendemos, não é um resultado necessário do progresso, ou de um ato revolucionário",
No início abril de 1968, Martin Luther King estava em Memphis, Tennessee, para apoiar a greve de trabalhadores negros da limpeza urbana. Em 3 de abril, pronunciou um dos seus discursos mais famosos: "Eu estava no topo da montanha", quase uma profecia, na qual disse que, como Moisés, tinha visto a terra prometida do Monte Nebo, mas nela não tinha podido entrar, talvez ele também não entraria; mas Deus lhe tinha permitido subir ao topo da montanha para vê-la, a Terra Prometida dos Povos Negros. Por isso, “estou feliz nesta noite. Não tenho medo de nada e de ninguém". No dia seguinte King, que tinha recebido muitas ameaças de morte, foi morto por James Earl Ray, um assassinato ainda em parte envolto no mistério.
Martin Luther King, com sua ação e sua morte, tornou-se um ícone da luta dos afro-americanos pela liberdade e pelos direitos civis. No entanto, não sei até onde estamos preparados para aceitar que King seja um afro-americano, com uma visão que começou a partir daí, da cultura negra americana, nascida da destruição das muitas tradições de grupos étnicos africanos reduzidos à escravidão. Uma enorme devastação cultural à qual escravos e negros livres responderam criando uma nova cultura, que era negra e americana juntas, porque os negros quase sempre queriam ser americanos, livres nos Estados Unidos. Fazer de Martin Luther King um símbolo universal, implica não eliminar sua história específica de afro-americano e de americano.
Em nosso país, ateu e católico, não se quer nem mesmo lembrar que King fosse, acima de tudo e sempre, um pastor batista, filho e neto de pastores batistas, a Igreja negra por excelência, com uma fé extática e pouca teologia; a Igreja que sempre viu no retorno de Israel a Canaã a figura da liberdade alcançada pelos negros, e isto como saída do pecado e retorno a Cristo. Ao lutar pelos direitos civis, King estava lutando por Cristo e, então, lutava também pela América. Queria ser o pastor da nação, como já disseram muitos que o conheceram. Ele pretendia redimir a alma da América.
Martin Luther King encarna o movimento pelos direitos civis, que, no entanto, não se reduzem a ele, ao contrário, ele próprio é um fruto, porque o movimento já estava vivo, bem antes dele, com uma resistência silenciosa às chamadas leis de Jim Crow, que no final do século XIX estabeleceram a segregação racial nos Estados do Sul, imediatamente declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal. O empenho continuou com o nascimento, em 1909, da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (Naacp), uma associação de negros e brancos que lutavam para garantir a igualdade de todos os cidadãos. Esse movimento cresceu, e dividiu-se entre uma ala integracionista, sob a liderança de Booker T. Washington, e uma radical, com o grande ativista e intelectual W. E. B. Dubois. Na década de 1930, o jamaicano Marcus Garvey jogou, em Harlem, o bairro afro-americano de Nova York, as bases do nacionalismo negro, que seriam retomadas, trinta anos depois, no Black Power, por Stokely Carmichael.
Uma história em que o movimento dos direitos civis dos anos 50 e 60 compõem um capítulo fundamental, mas apenas um capítulo. A história, acima de tudo, de um movimento de base, uma rede de atividades e de associações locais que apareciam às centenas, desapareciam e voltavam continuamente a viver.
Em 1954, aos 25 anos, King tornou-se pastor da Igreja Batista na Dexter Avenue, em Montgomery, Alabama, uma das cidades onde a segregação e a resistência negra eram mais robustas, e logo foram absorvidas pelas atividades políticas de afro-americanos. No mesmo ano, um caso judicial de teste, promovido pela Naacp, levou a Suprema Corte, no caso chamado Brown contra Board Education ("escritório escolar"), a declarar inconstitucional a segregação nas escolas. Foi a primeira grande vitória do movimento. Em dezembro de 1955, em Montgomery, a costureira e ativista negra Rosa Parks se recusou a ceder o lugar a um homem branco em um ônibus segregado da cidade, e foi presa. As organizações afro-americanas, lideradas pelo pastor Ralph Abernathy, animaram, então, um boicote aos ônibus da cidade. Para dirigir esse movimento chamaram King, que por sua vez foi preso, e teve sua casa incendiada por uma bomba, mas não recuou. Depois de mais de um ano de luta, os ônibus de Montgomery foram desagregados e King tornou-se uma figura nacional.
Ao amadurecer como líder político, elaborou a teoria da não-violência, a partir das palavras de Jesus - "Quem com a espada fere, pela espada morre" -, enriquecidas com o encontro do pensamento de Gandhi, já difuso por outros ativistas negros. Jesus, Gandhi e David Thoreau, o grande filósofo e poeta antiescravista, que escolhera a prisão a apoiar a guerra de agressão contra o México, em 1846, foram os pilares do seu pensamento. Vários líderes afro-americanos, como Robert F. Williams, antes das Panteras Negras dos anos sessenta, ou mesmo de Malcolm X, praticavam a resistência armada como forma de autodefesa.
King opôs-se a eles; mas não foi um pacifista absoluto. A não-violência era para ele um sistema de vida, uma atitude ética, que o levou a nunca responder às agressões repetidas que sofria; mas, como para Gandhi, era um instrumento de luta, um instrumento dos fortes, para obter resultados. Foi o método que seguiu em todos os eventos que organizou, como, por exemplo, as marchas de março de 1965, de Selma a Montgomery, pelo direito de voto aos negros, em que a violência policial contra milhares de manifestantes pacíficos provocou um tal protesto que permitiu a aprovação, no mesmo ano, do Voting Rights Act (Lei dos Direitos de Voto), lei que acabou com a discriminação racial que impedia os negros de votarem nas eleições.
King, com Gandhi e Nelson Mandela, são o ícone de um conflito que colocou os brancos cara a cara com sua herança política mais preciosa, e muitas vezes esquecida, o princípio de igualdade das Revoluções Americana e Francesa, que agora entendemos, não é um resultado necessário do progresso, ou de um ato revolucionário. São conquistas que se perdem facilmente, e, para as quais, precisamos de luta pacífica, mas real, e vigilância contínua.