O livro de Abdias: A vitória vem do Senhor

 O livro de Abdias é um folhetim. Tão pequeno é o texto que nem foi dividido em capítulos – coisa rara na Bíblia – acontecendo o mesmo somente com quatro livros do Novo Testamento (Carta de Judas, Carta de Paulo a Filêmon, Segunda e Terceira Cartas de João). O texto não só é curto, mas à primeira vista também estranho. Sua teologia nem sempre soa bem aos nossos ouvidos moralistas, afinal onde já se viu fazer oráculos de destruição para os inimigos (Edom ou Esaú), em vez de amá-los como disse Jesus (cf. Mt 5,43-48) e perdoar-lhes até setenta vezes sete (cf. Mt 18,21-22)? Para entender o livro de Abdias, é preciso entender o que se passava dentro da cabeça do povo (seu modo de pensar) e o fora dela, ou seja, o que estava acontecendo naquela época (seu contexto).

Bom, comecemos pela homérica rixa entre Edom e Israel. Israel (também chamado Jacó) é filho de Isaac e Rebeca; assim como seu irmão gêmeo Edom (também conhecido como Esaú), mas que era primogênito, pois nascera primeiro. A briga entre Esaú e Jacó, ou seja, entre Israel e Edom, é coisa de que o povo sempre ouvira falar. Tal é sua extensão que, ao relatar o nascimento das crianças, o escritor sagrado fala de dois povos que brigavam entre si já no ventre da mãe Rebeca e que nasceram disputando o direito de primogenitura. Esaú fora mais esperto e nascera primeiro, mas com Jacó pegando no seu calcanhar, para não ficar para trás[1]. A briga entre os dois se eterniza. Jacó compra o direito de primogenitura de seu irmão por um prato de comida e, mais tarde, na hora de se receber a benção do pai e se apossar dos direitos do primogênito, esquece-se do comercio que havia feito, trapaceando Jacó. Mas Jacó, auxiliado por sua mãe, vai fazer valer o negócio que tinha fechado com seu irmão tempos atrás. Toda essa trama para dizer que este dois povos, apesar de serem irmãos, têm uma inimizade que se prolonga no tempo.

 Posto isso, podemos entender o contexto do oráculo de Abdias contra Edom. Por ocasião da invasão da Babilônia no Reino do Sul (Judá, capital Jerusalém), quando o povo foi deportado para longe de sua terra natal, o povo de Edom se deliciou com a queda do irmão rival. Aproveitou-se da fragilidade da ocasião para invadir Jerusalém e saqueá-la depois dela já ter sido devastada pelos babilônicos. Isso foi demais para Israel perdoar, afinal Edom acabara de “chutar o cachorro morto”, como diz nossa gente. Cresceram raiva e revolta ainda maiores nos israelitas em relação aos edomitas. Nós podemos saber mais sobre esta indignação do povo de Israel no Salmo 137,7-9. Este é também um salmo estranho; é do grupo dos salmos imprecatórios, mas que revela seu modo de pensar. Imprecar é o mesmo que rogar praga, maldizer. No caso, a praga é rogada em forma de oração, pedindo a Deus que vingue o inimigo, devolvendo a ele o mal que fizera até o ponto de desejar ver Deus “agarrar e esmagar seus recém-nascidos contra a rocha”. Uma oração pra lá de extravagante, mas que pode ser entendida sem problemas. O povo pede a vitória a Deus; para ter vitória, o inimigo – que humilhou Israel e continua agora o ameaçando – deve ser destruído; sua raça deve ser eliminada da terra, como um mal que deve ser cortado pela raiz. Num tempo em que o povo vivia sob a lei de Talião, “dente por dente, olho por olho”, Israel só está pedindo que a lei se cumpra, que seu Deus o defenda do inimigo.

Então já entendemos. O contexto é de inimizade de longos tempos, reforçada pela invasão de Edom a Jerusalém por ocasião do exílio. O modo de pensar é: se Deus é por nós, deve ser contra nossos inimigos, logo vai castigá-lo pelo mal que nos fez. É dentro destas categorias que devemos ler o pequenino livro de Abdias. Abdias teria sido um profeta que, vendo as humilhações de Israel provocadas por Edom (cf. v. 10-11), logo após o retorno para Jerusalém, anuncia a Edom castigos de Deus aos edomitas, pois Deus é o seu defensor. Mas são castigos na justa medida da lei de Talião: “Como fizeste aos outros será feito contigo!” (v. 15).

Ao final, Abdias profetiza uma mensagem de esperança para Judá. Apesar de ter sido devastada e humilhada por todos por ocasião do exílio, agora Jerusalém vai ser reerguida: “Jacó será fogo e Esaú será estopa” (v. 18). O povo israelita sairá vitorioso de suas batalhas. Para o inimigo, o dia do Senhor será castigo; para o povo que confia no seu Senhor, este dia será de restauração.

E nós? Será que o livro de Abdias nos diz algo? Claro que sim. Toda a violência da linguagem revoltosa de Israel contra Edom não apaga a beleza do texto. Abdias confia que seu Deus é sua vitória, que ele é quem o defende dos inimigos. Ainda que hoje nossos inimigos devam ser amados e perdoados como disse Jesus, não devemos nos esquecer na hora da tribulação que Deus está conosco e nos dá vitória. Sua força nos sustenta nos embates da vida. E, se entendemos que nossos piores inimigos estão dentro de nós mesmos muito mais que fora de nós, aí é que devemos confiar mesmo no Senhor nesta batalha travada. Vencer estas batalhas da vida, só se for com a força de Deus.

[1] Se quiser saber mais sobre essa trama, leia o artigo “Esaú e Jacó: elogio à esperteza e à teimosia” na página Artigos deste mesmo site.

Solange Maria do Carmo
Colaborou: Fique Firme

O Tesouro do Reino | Reflexão sobre Mateus 17:22-27

A perícope do Evangelho de hoje é Mt 17:22-27. Este texto traz, em um primeiro momento, Jesus anunciando sua morte e ressurreição. Trata-se do segundo anúncio da Paixão no Evangelho de Mateus. O texto ressalta a tristeza dos discípulos. Neste segundo anúncio, Pedro não apresenta resistência, como acontecera no primeiro anúncio em Mt 16,21-23.

No versículo 23 o relato evangélico muda de cenário. Chegam a Cafarnaum. Ali, tem um confronto com os cobradores de impostos do Templo que querem saber se Ele, Jesus, paga impostos. Este imposto, cobrado localmente pelos dignitários da religião judaica, é mencionado no Antigo Testamento por Neemias (Ne 10,33), possivelmente com referência em Ex 30,11-16.

O que se segue nos próximos versículos, mescla uma questão de profunda delicadeza, isto é, a provocação dos cobradores de impostos – talvez para pô-lo à prova – e um acontecimento fantástico. Jesus instrui aos discípulos para que pagassem os impostos. Mesmo que motivado por se evitar celeumas. Este pedido se dá revestido com uma forma legendária de se contar uma história. Disse Jesus: “vai ao mar, lança o anzol, e abre a boca do primeiro peixe que pescares. Ali encontrarás uma moeda; pega então a moeda e vai entregá-la a eles, por mim e por ti” (Mt, 17,27).

O incidente, no qual se misturam fatos fantásticos, serve também de instrução aos discípulos, e provavelmente à comunidade judaico-cristã, enquanto diante das muitas realidades da vida e das propostas do Reino de Deus. Podemos perceber que o relato referente aos imposto se insere após o segundo anúncio da Paixão. Enquanto muitos esperavam um Messias triunfante, cheio de glória e poder, segundo as pedagogias dos dominadores; Jesus anuncia que a consequência de seu anúncio da Boa Nova será o escândalo da Cruz (cf. 1Cor 1,23). Escândalo para aqueles que esperavam um messias político, que viria derrubar com seu exército a ocupação romana. Aqui podemos entender, também, o que pode parecer fora de lugar no texto, ou seja, a problemática dos impostos e a pesca fantástica, onde de dentro do primeiro peixe pescado, se encontraria a moeda a ser destinada ao pagamento.

Os poderosos deste mundo sempre confrontarão o projeto do Reino de Deus. Assim como no livro de Jonas, quando o profeta passa três dias dentro do ventre do grande peixe (Jn 2,1), onde temos uma prefiguração da Paixão, morte e ressurreição de Jesus; no Evangelho de hoje, podemos perceber a dimensão libertadora que advirá do Messias dos Pobres. Jonas saiu do ventre do peixe e seguiu sua missão, salvando Nínive do triste destino eminente. O peixe no relato de hoje tinha dentro de si a moeda necessária para prestar a satisfação exigida pelos cobradores de impostos. O peixe, aqui, abriga o instrumento de confronto ao litígio dos cobradores de impostos. Pagando o imposto, Jesus frustra a conspiração contra ele e seus discípulos. Mesmo que só tardando sua Paixão que estava por vir. Em Jerusalém, Ele será condenado, torturado, morto e – no terceiro dia – ressuscitará. Nisto, habita a esperança em nós. Em Cristo, por sua Paixão, teremos nossa vida ressignificada. Reconstruída sob a perspectiva da realidade do Reino de Deus. Neste sentido, podemos concluir que o texto da Liturgia de hoje tem como tema central a restauração de nossas vidas pelo Mistério Pascal de Jesus.

Que possamos em nosso caminhar eclesial manter em nós uma espiritualidade Pascal. No seguimento de Jesus Cristo e em comunhão fraterna com toda a Igreja, devemos anunciar a Boa Nova do Evangelho com alegria, jeito humilde e paixão: acolhendo o Reino de Deus e contribuindo em sua construção já aqui na Terra, na esperança do Reino Definitivo.

Reflexão do Dia - Evangelho Segundo Lucas 12:32-48

A liturgia deste décimo nono domingo do tempo comum continua a nos situar no caminho de Jesus para Jerusalém. Com isso, somos chamados a continuar refletindo sobre a condição de discípulos e discípulas, uma vez que esse caminho é a profunda catequese de Jesus para o seu discipulado de ontem e de hoje. Como tem sido afirmado nos últimos domingos, o caminho de Jesus no Evangelho de Lucas é um programa formativo, constituído de dez capítulos (Lc 9–19), nos quais são tratados diversos temas, e todos conexos entre si. O texto de hoje – Lc 12,32-48 – apresenta o tema da vigilância e da responsabilidade como exigências para a comunidade herdeira do Reino, a qual é chamada ao encorajamento diante das dificuldades enfrentadas ao longo do “caminho”. Pode-se dizer que esse caminho, aqui, é a própria história no seu desenrolar-se e, portanto, o que Jesus ensinou aos seus discípulos de primeira hora, continua válido para os cristãos e cristãs de todos os tempos e lugares. Para uma melhor compreensão do texto, que é bastante longo, podemos dividi-lo em duas partes: uma primeira, introdutiva (vv. 32-34), e uma segunda, composta de três pequenas parábolas (vv. 35-48) que visam ilustrar com imagens o tema apresentado na introdução. É um texto longo, mas bastante compreensível, desde que esteja claro o seu contexto, que é o caminho formativo da comunidade.

O primeiro versículo é a grande chave de leitura para todo o texto: “Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o reino” (v. 32). O pedido de encorajamento (v. 32a) é sinal de que a proposta de Jesus não é de fácil assimilação. As exigências e responsabilidades para segui-lo eram muitas, por isso havia tendência à desistência entre os discípulos. À medida em que avançava no caminho, Jesus sentia que as hostilidades e obstáculos ao seu revolucionário projeto só aumentavam, tanto por fatores externos quanto internos. Com o aumento das exigências, os discípulos começavam a perceber que Jesus não apresentava nenhum traço do messias ideal, esperado há séculos. Ao invés de messias triunfante, como esperavam os judeus, um restaurador do reino davídico-salomônico, Jesus parecia um fracassado, mostrando que suas pretensões não passavam da constituição de um “pequeno rebanho” (em grego: μικρὸν ποίμνιον – mícron poímnion). Ora, os discípulos esperavam um líder comandante de um exército, de repente Jesus se apresenta como um simples pastor e de um pequeno rebanho. Por isso, Jesus insistia pedindo coragem e perseverança, ao ver que seus discípulos davam demonstração de desânimo e vontade de desistir. 

Ora, os discípulos precisavam de muita coragem e perseverança, exatamente porque formavam um “pequenino rebanho” (v. 32a), praticamente invisível e sem importância, diante das grandes estruturas religiosa e política da época: o judaísmo oficial e o império romano, respectivamente. Paradoxalmente, o pequeno rebanho tem um grande valor, pois “foi do agrado do Pai dar-lhes o Reino” (v. 32b). Realmente, trata-se de algo maravilhoso e até surpreendente, mas inconcebível para as pretensões triunfalistas vigentes naquele tempo. O reino proposto por Jesus, confiado pelo Pai à pequena comunidade, não contém os elementos esperados, tais como poder, riqueza, vaidade, concorrência e grandeza. A proposta de Jesus contempla uma verdadeira inversão de valores e, certamente, a comunidade dos discípulos não estava ainda pronta para absorver essa virada radical. Por isso, a insistência de Jesus ao pedir coragem e perseverança.

Na sequência do texto (v. 33), são apresentadas algumas das exigências para os discípulos decidirem continuar ou não como membros do “pequeno rebanho”“vendei vossos bens e dai esmola” (v. 33a). Com certeza, no grupo dos discípulos ainda havia alguns fazendo média com Jesus, aderindo pela metade, ou seja, aparentemente despojados, mas com algumas reservas escondidas, como Ananias e Safira, em Atos dos Apóstolos (cf. At 5,1-11). Por sinal, é importante recordar que o contexto do texto reflete mais a situação das comunidades na época da redação do Evangelho – anos 80 do primeiro século – do que mesmo o grupo dos primeiros discípulos chamados por Jesus. Ao narrar os eventos do caminho de Jesus, Lucas pensa nas comunidades do seu tempo, que se sentiam pressionadas pelo judaísmo oficial e perseguidas pelo império romano. Inclusive, tinham dificuldade em aceitar a pequenez que representavam diante de outras estruturas, como a da própria religião judaica, com uma rede estruturada de sinagogas espalhadas por todo o império romano. Diante disso, o evangelista recorda que foi o próprio Jesus quem admitiu a pequenez da comunidade que, paradoxalmente, é embrião do Reino de Deus.

E um dos entraves para o Reino tornar-se cada vez mais concreto nas comunidades era o apego aos bens materiais. Percebendo isso, Jesus pede um desprendimento total. Parece que a parábola do rico insensato, refletida no domingo passado (cf. Lc 12,13-21), ainda não fora suficiente para esclarecer aos discípulos sobre a incompatibilidade entre o apego aos bens materiais e os valores do Reino. Não basta vender os bens, é necessário aplicar bem o valor destes para que, realmente, um tesouro no céu seja adquirido, isto é, partilhando com os pobres. “Dar esmola” na mentalidade semítica significa fazer justiça. A continuação do versículo mostra o que deve ser o objetivo do discípulo: possuir “um tesouro no céu” (v. 33b), ou seja, buscar coisas que não se acabam, mas que permanecem para toda a vida. Os discípulos ainda não tinham assimilado o ensinamento da parábola do rico insensato (cf. 12,13-21), ou seja, não tinham compreendido a necessidade de que é necessário perder aos olhos do mundo, para ganhar aos olhos de Deus. Jesus pede para que eles busquem o que é eterno, o que realmente tem valor no Reino que o Pai lhes confiou. E esse é um tema muito caro para Lucas (cf. Lc 11,41; 16,9; 19,8).

A conclusão da primeira parte é feita com um provérbio: “Onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração” (v. 34). Vale a pena recordar a importância do uso da imagem do “tesouro” na Bíblia. O primeiro sentido é a reunião de coisas preciosas acumuladas para serem conservadas como sinal de segurança, por isso, deveria ficar escondido, pois, se revelado, logo seria alvo de cobiça e estaria sujeito a assaltos. Como significa algo muito precioso, o termo passou a ser usado como imagem de realidades espirituais, em contraposição a bens materiais, principalmente na literatura sapiencial (cf. Pr 2,4; Sb 7,14; Eclo 1,25). Todo judeu possuía um tesouro, independentemente do valor, porque tinha algo central em sua vida. O que o ser humano considerava mais importante na sua vida era o seu tesouro. Jesus se apropria desse uso para ilustrar a sua descrição do Reino de Deus em diversas ocasiões, como no texto de hoje. Como o coração para a mentalidade hebraica significava a sede do pensamento e a consciência do ser humano, ou seja, o centro da vida, Jesus quer dizer que é para o tesouro que a vida do homem se volta.

Na continuidade da catequese, Jesus apresenta três pequenas parábolas com o intuito de reforçar o ensinamento proposto. Ora, se durante a sua presença física, Ele já via sinais de desânimo entre os discípulos, muito mais seria quando já não estivesse mais fisicamente entre eles. Por isso, as parábolas insistem no tema da vigilância e da responsabilidade, preparando a comunidade para a continuidade da missão após a sua morte. Estas parábolas são, ao mesmo tempo uma chamada de atenção aos discípulos e uma crítica à hierarquia religiosa judaica. A localização destas parábolas ainda no início do caminho é sinal da importância que o tema da vigilância possui para Lucas, pois se trata de um tema escatológico, mais apropriado para a fase final do ministério de Jesus em Jerusalém, próximo à sua morte, como fazem Marcos e Mateus, inserindo parábolas semelhantes (cf. Mc 13,32-37; Mt 42-51). Ao colocá-las logo na etapa do caminho, o evangelista Lucas indica a importância do tema e a necessidade de mantê-lo em evidência no dia-a-dia da comunidade, ensinando que a vigilância não é uma atitude a se tomar no final da vida, e sim durante toda a existência.

A primeira parábola apresenta a imagem de um senhor que viaja para uma festa e deixa tudo aos cuidados dos seus servos (vv. 35-38). É introduzida com um imperativo: “Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (v. 35). Parece uma imagem sem sentido para os dias atuais, mas muito significativa no seu contexto. É a imagem de quem está em atitude de serviço. A vestimenta básica da época era a túnica; essa não facilitava o serviço, pois atrapalhava o movimento. A expressão “os rins cingidos” quer dizer estar com a túnica levantada até a cintura, posição dos rins, presa ao cinto. Com isso, facilitava-se o movimento. Era assim que ficavam enquanto trabalhavam ou viajavam. Significa estar pronto para caminhar e servir. Jesus pede uma postura vigilante, mas ao mesmo tempo serviçal. Seus discípulos devem vigiar sim, eis o sentido das “lâmpadas acesas”; mas, enquanto vigiam colocam-se em prontidão para o serviço. Foi “cingido” que Jesus lavou os pés dos discípulos na última ceia (cf. Jo 13,4-5). Também os hebreus celebraram a primeira Páscoa assim: “E comereis assim: com a cintura cingida, as sandálias nos pés” (cf. Ex 12,11a). Há uma clara intenção da parte de Lucas de incentivar a comunidade a manter-se constantemente em espiritualidade pascal. Isso se confirma pela continuação da parábola, na qual se diz que quando o senhor voltar da festa fará os servos sentarem-se à mesa, e os servirá (v. 37). Uma atitude surpreendente para quem é senhor. Essa é uma das mais belas imagens que Jesus aplica a Deus e a si mesmo: um senhor, grande proprietário que, ao invés de exigir serviço dos seus servos, abaixa-se para servi-los. Somente Jesus, sendo Senhor, fez-se servo (cf. Lc 22,27).

A segunda parábola (vv. 39-40) apenas reforça a necessidade da vigilância, através da imagem do ladrão que não avisa a hora do assalto, mas procura exatamente surpreender o dono da casa. É necessário que a comunidade não seja surpreendida. Essa é a única vez, em toda a Bíblia, que Deus é apresentado como um ladrão, embora o “Dia do Senhor” seja apresentado com essa mesma imagem (1Ts 5,2; 1Pd 3,10; Ap 3,3). A falta de conhecimento do dia e da hora da vinda do Senhor deve ser motivo para a comunidade não desviar o foco por um único instante; isso quer dizer que os discípulos não podem, em momento algum, deixar de viver o programa de Jesus, ou seja, o Evangelho do Reino.

A terceira parábola (vv. 42-48) é uma resposta direta à pergunta de Pedro: “Senhor, tu contas essa parábola para nós ou para todos?” (v. 41). Está claro que os discípulos não eram os únicos ouvintes de Jesus no momento. Essa pergunta reflete o medo da responsabilidade que afligia os discípulos. De fato, para um rebanho tão pequeno, era muita responsabilidade herdar o Reino e assumir as suas consequências. Jesus não responde diretamente, mas com a parábola (vv. 42-48). Nessa, ele faz uma crítica explícita à hierarquia religiosa judaica, acusada de relaxamento e mau exemplo desde os tempos do profeta Ezequiel, através da imagem dos “maus pastores” (cf. Ez 34,1-10), e ao mesmo tempo alerta a comunidade dos discípulos a perseverar como guardiã do Reino, consciente da responsabilidade. Provocado pela pergunta de Pedro, e percebendo a sua insegurança, Jesus direciona o ensinamento para os discípulos. É deles que serão feitas exigências maiores, exatamente porque a eles foi confiado o Reino. E essas exigências se estendem aos discípulos e discípulas de todos os tempos. Por isso, ele ilustra com a contraposição de comportamentos de dois servos. O primeiro age com prudência, fidelidade e comportamento exemplar, e tem como recompensa um crescimento na confiança do seu senhor (vv. 42-44). O segundo, pelo contrário, relaxa nas comodidades da vida e no abuso do poder (vv. 45-46).

Comer e beber em demasia, até embriagar-se, era sinal de felicidade, numa sociedade e religião que pregavam a prosperidade como bênção de Deus, assim como maltratar os criados e criadas não passava de uma demonstração de autoridade. Jesus reprova tais atitudes, pois ferem a dignidade humana (os maltratos) e distraem o ser humano do essencial que é cultivar tesouros no céu e não se deixar dominar pelas coisas passageiras (comida e bebida). A punição anunciada – “partir ao meio” (em grego: διχοτομήσει – dikotomssei) – era a máxima execução aplicada na Pérsia, mais cruel até que a crucifixão no império romano. Não é um anúncio de castigo, mas um alerta à perda de sentido da vida. Partido ao meio, o ser humano estava impedido de participar da ressurreição no último dia, como acreditavam os judeus. Portanto, estavam destinados ao sofrimento eterno. Essa é a imagem de uma vida sem sentido. Os versículos conclusivos (vv. 47-48) refletem uma particularidade do direito judaico:  a responsabilidade e a culpa têm uma proporção gradual segundo o nível do conhecimento. As penas eram aplicadas de acordo com o nível de conhecimento da lei. Quem conhece a vontade de Deus, expressa sobretudo nas Sagradas Escrituras, tem o dever de pô-la em prática primeiro, bem como quem detém dons e carismas na comunidade. E é esse o objetivo do evangelista: chamar a atenção das lideranças da comunidade que, além dos processos de institucionalização e hierarquização, davam sinais de comodismo e relaxamento em relação às exigências do Evangelho.

Percebemos, então, com evangelho de hoje, o convite de Jesus à comunidade-Igreja para abraçar com humildade a responsabilidade de herdeira do Reino, tendo a missão de fazer esse Reino crescer. É preciso conscientizar-se da condição de pequeno rebanho, abrindo mão de qualquer mentalidade triunfalista e pretensões de poder. Toda a comunidade é convidada a empenhar-se nesse projeto, pois ela toda é herdeira. Porém, há uma exigência maior para aqueles que assumem responsabilidades maiores. Para isso, é necessária a vigilância constante. E o sentido da vigilância não é provocar medo, mas tornar as pessoas atentas, sensíveis e disponíveis à vontade de Deus e às necessidades do próximo.

Fonte: https://ocaminheirodoreino.com/2022/08/07/reflexao-para-o-19o-domingo-do-tempo-comum-lucas-1232-48/