O dispensacionalismo é um sistema de interpretação, criado há menos de 200 anos, que encara a história da salvação a partir do conceito de “dispensações”, fases diferentes dessa história nas quais “alianças” diferentes de Deus com os homens marcam modos diferentes de relacionamento dos homens com Deus, com diferentes promessas e diferentes mandamentos. Essa história inclui eventos futuros, e por isso o grande apelo do dispensacionalismo é apresentar esses eventos em uma ordem e complexidade que nenhum outro sistema poderia ter.
Embora o dispensacionalismo não esteja errado em todos os detalhes — é praticamente impossível que alguém erre em tudo —, ele erra no que é principal. Resolvi descrever aqui os erros que no momento considero os piores no dispensacionalismo, limitando-me à escatologia. Eu poderia falar também do erro sobre Israel (e a da confusão do povo de Israel com o estado de Israel), mas pretendo deixar esse erro para outro momento. São eles:
1. Não interpretam a Bíblia literalmente: É parte da auto-promoção dispensacionalista a afirmação de que eles interpretam a Bíblia “literalmente”. No mundo evangélico em que os dispensacionalistas vivem, isso é visto como qualidade. Mas a propaganda não é verdadeira. A literalidade dos dispensacionalistas é altamente seletiva; o que define a literalidade do texto é o sistema. Assim, embora afirmem encarar literalmente as profecias mileniais do AT — não existe “Milênio” no AT, mas isso é só detalhe — eles nunca interpretam literalmente coisas que poderiam interpretar literalmente nessas profecias, como a figura de Davi (Jr. 30:9; Ez. 37:24,25; Os. 3:5), que é alegorizada em referência a Cristo. Também não interpretam a Babilônia literalmente, no Apocalipse. Também não interpretam literalmente as duas ressurreições em Ap. 20:4-6 (ver abaixo).
Talvez só interpretem literalmente as profecias do AT referentes à nação israelita, mas só se desconsiderarmos o modo como recortam essas profecias — como quando inventaram uma “pausa” nas setenta semanas de Dn. 9, mutilando o texto. Outro texto mutilado é a profecia de Is. 65:17-25, segundo a qual há ainda morte e doença nos “novos céus e nova terra”; para encaixar esse texto no sistema, a parte final do texto se refere a antes (o “Milênio”, no qual há ainda morte e doença), e a parte anterior se refere a depois (a eternidade, sem morte e sem doença).
É claro que nada obriga a interpretar a Bíblia com a literalidade que os dispensacionalistas alegam interpretar. Mas o dispensacionalismo mente ao dizer que interpreta a Bíblia com literalismo consistente.
2. Multiplicação: Simplicidade definitivamente não é uma marca do dispensacionalismo. Duas vindas futuras, três ressurreições, três juízos futuros, dois povos de Deus. Diante de duas ou mais profecias do mesmo evento e que não são iguais, o dispensacionalista propõe a brilhante solução de separar em dois eventos. Ao invés de procurar uma unidade fundamental nos textos, para além da literalidade, o dispensacionalista apega-se à literalidade dos detalhes, multiplicando os eventos profetizados.
Assim, eles concluem que haverá três juízos diferentes: o Tribunal de Cristo (apenas para os “arrebatados”), o Juízo das nações (vários anos depois, antes do “Milênio”) e o Juízo Final (depois do “Milênio”).
Mas nem sempre a multiplicação de eventos se deve à multiplicidade de textos. Às vezes, é simplesmente uma dedução do sistema. Não satisfeitos com as duas ressurreições de Ap. 20:4-6 (uma para os mártires, outra para o restante dos mortos), os dispensacionalistas inventaram outra ressurreição antes dessas, para os cristãos de todas as épocas, durante o “arrebatamento secreto”. Segundo eles, na realidade a primeira ressurreição tem “fases” diferentes; mas assim negam a literalidade do texto, segundo o qual a primeira ressurreição é apenas para os mártires. Se querem interpretar literalmente, é essa a literalidade do texto.
3. Separa a Segunda Vinda do Juízo Final: Durante quase dois milênios os cristãos acreditaram e pregaram que Jesus viria para “julgar os vivos e os mortos” (2Tm. 4:1); é o que dizem o Credo Apostólico e o Credo Niceno: Jesus está à direita do Pai e de lá virá para julgar os vivos e os mortos, não para “arrebatar secretamente”.
Esse vínculo entre a Segunda Vinda e o Juízo Final de toda a humanidade geralmente está presente quando a vinda de Jesus é mencionada: em 2Ts. 1:5-10, o dia da punição eterna dos réprobos é o mesmo dia da glorificação nos salvos. O mesmo ocorre em Hb. 10:12,13: Jesus estará sentado à direita do Pai até que todos os seus inimigos estejam postos aos seus pés. Também em 1Co. 15: a vinda de Cristo se dá com todos os inimigos sob os seus pés, a ressurreição do salvos e o fim definitivo da morte.
De fato, a separação entre a vinda de Jesus e o Juízo Final é uma negação gritante do ensinamento central da Parábola do Joio e do Trigo conforme interpretada pelo próprio Jesus (Mt. 13): o joio e o trigo crescem juntos até o fim do mundo, quando chega o momento do joio ser arrancado e jogado ao fogo, e o trigo depois recolhido.
4. Arrebatamento secreto: Os dispensacionalistas invetaram a idéia maluca, inédita na história do cristianismo, de que antes da vinda de Cristo — ou ao menos como uma “primeira fase” da vinda de Cristo (os dipensacionalistas amam fases) — haverá um arrebatamento secreto, que poderia ocorrer a qualquer momento, mas que seria invisível para o restante do mundo. Nesse arrebatamento secreto, os cristãos seriam levados diretamente para os céus para morar por sete anos. Os que forem “deixados para trás” seriam governados pelo anticristo, mas poderiam, ainda assim, se converter; teriam uma “segunda chance”.
O grande mistério do dispensacionalismo é realmente esse arrebatamento secreto. Como não há nenhum texto bíblico que fale mesmo que indiretamente sobre um arrebatamento secreto, é um mistério entender como surgiu essa noção. Não surgiu de um literalismo distorcido (como os múltiplos Juízos), porque não há um texto para distorcer; e também não deve ter surgido de uma dedução do sistema (como as múltiplas ressurreições), porque o sistema dispensacionalista não precisa de que o arrebatamento seja “secreto”. Aquilo que os dispensacionalistas mais aguardam e pregam é justamente aquilo que não tem nenhuma relação com a Escritura!
É claro que a Escritura jamais separa a vinda de Jesus em “fases”, nem fala de uma primeira fase “secreta” ou invisível. Tudo o que foi dito acima, vinculando a vinda de Cristo ao juízo final, desfaz qualquer idéia de arrebatamento secreto.
Reverendo Gyordano