Assuntos envolvendo a arqueologia bíblica e os livros de autoria mosaica tendem a ser constantemente questionados por acadêmicos liberais ao redor do mundo.Apesar de alguns negarem a historicidade do início da nação israelita, há evidências para se crer que a narrativa do Pentateuco possui credibilidade histórica.Entre os que defendem a realidade histórica do relato, há uma divisão quanto à data do Êxodo. O importante estudo cronológico de Edwin Thiele sobre os reis de Israel situa o Êxodo em torno de 1450 a.C., ou seja, na XVIII dinastia (cf. I Rs 6:14; Jz 11:26); o faraó da ocasião seria Thutmose III ou Amenhotep II.
Um segundo grupo defende data mais recente, algo em torno de 1300 a.C., exatamente no período do faraó Ramsés II, que viveu na XIX dinastia e é um dos monarcas mais conhecidos na história egípcia. Número significativo de pesquisadores do Antigo Testamento recorrem a Êxodo 1:11 para defender o Êxodo como tendo ocorrido na XIX dinastia,[7] onde é dito que os israelistas construíram duas cidades celeiros para o faraó: Pitom e Ramessés.
Entre as datas, temos um lapso de aproximadamente 150 anos. Como harmonizar as informações? A mera menção do nome Ramessés, em si, é um indicativo do Êxodo na XIX dinastia?
Ramessés como a Per-Ramesse egípcia
Per-Ramesse é uma abreviação do nome Per-Ramesse mry ‘Imn ‘aa nehtw, “residência de Ramses, amado de Amon, o grande Vencedor”. O primeiro a sugerir essa possibilidade foi H. Brugsch, em 1875. Outra versão do nome pode aparecer como Pi-Ramesse. Os estudos arqueológicos têm lançado luz considerável sobre o histórico de Per-Ramesse. Inscrições egípcias informam que ela foi fundada por Seti I, o segundo faraó da XIX dinastia, e concluída pelo seu filho Ramsés II. Essa cidade foi a capital dessa dinastia, e tem sido identificada com Tanis e/ou Qantir. Vejamos brevemente essas duas identificações, começando com Tanis.
O primeiro a sugerir que a cidade Per-Ramesse estava localizada em Tanis foi novamente H. Brugsch, em 1872. Segundo Siegfried J. Schwantes, após a expulsão dos Hiksos, a cidade de Ávaris teve seu nome mudado para Tanis e aparece no Antigo Testamento com o nome Zõa (cf. Nm 13:22; Sl 78:12 e 43).[14] A declaração em parte é verdadeira, porém, o momento onde Ávaris é identificada com Tanis é questionável.
Tanis é a atual San el-Hagar e teve seus primeiros trabalhos feitos por Auguste Marriette (1860-1880), posteriormente por Flinders Petrie (1883-1886) e de forma significativa por Pierre Montet (1921-51). Ali foram encontrados vários templos dedicados às divindades Amum, Ptah, Re, etc., mas o palácio real de Ramsés II não foi encontrado. A identificação de Tanis com a Per Ramesse egípcia torna-se mais difícil ainda se levarmos em consideração as pesquisas posteriores ao trabalho de Montet. Os objetos encontrados lá, ou seja, em Sane l-Hagar, foram colocados ali posteriormente para construções, não no período do faraó Ramsés II. William Shea afirma que não há nenhuma confirmação arqueológica de habitação em Tanis antes da XXI dinastia, c. 1100 a.C.
Sobre Qantir a situação é mais harmoniosa. Qantir fica 17 km ao sul de San el Hagar. Mahmud Hamza foi o primemiro a escavar Qantir em 1928. As descrições de Per Ramesse que temos disponíveis no papiro Anastasis III, a saber, a fertilidade do campo, a existência de uma rota por terra e outra pelo mar para a Ásia e a presença de um palácio de Ramsés II, correspondem ao campo geográfico de Qantir.
Seu nome atual é Tell el-Dab’a e foi escavada por Manfred Bietak, diretor do Austrian Archaeological Institute, em meados da década de 1950. Os restos de ocupação dessa cidade por volta das dinastias XII e XIII revelam um fim por meio de uma grande e violenta destruição. Após a destruição, três estratos dos hyksos, sendo que o terceiro e último revela outra destruição violenta. Esta última pode ser relacionada com o início da XVIII dinastia, quando o faraó Ahmose expulsou os governantes semitas do Delta. Evidências apontam para o fato de que os faraós desta dinastia (XVIII) não tenham usado essa cidade, mas na dinastia seguinte (a XIX) ela foi reconstruída.
De acordo com Hershel Shanks, editor da Biblical Archaeology Review, a identificação da Ramessés bíblica com a Per-Ramesse egípcia é impossível foneticamente. Fontes egípcias nunca se referiram a essa cidade com o nome real de Ramessés, sozinho, antes, sempre é mencionada com a palavra egípcia pr (casa), ou seja, Per-Ramesse. A mesma opinião é defendida por E. Uphill e D. Cameron Alexander Moore.
Montet contra-argumenta a ausência do prefixo Per ou Pi no nome Ramesses. Para ele, esse é um fenômeno comum no texto veterotestamentário. Temos como exemplo o nome Baal-Meon, em Números 32:38, e Bet-Baal-Meon, em Josué 13:17, ou seja, a ausência do prefixo Bet (casa). Para ele, nomes puramente semíticos ou hebraicos podem, sim, ter tal ausência.
Porém, é importante lembrar que boa parte das cidades egípcias começadas com o prefixoPi ou Per, mencionadas nas páginas do Antigo Testamento (cf. Nm 33:8[20]; Ez 30:17) não o perderam. Se a Per Ramesse egípcia é a Ramessés bíblica, por que seu prefixo não aparece no texto? Per-Ramesse, portanto, não parece ser uma alternativa satisfatória para nossa pesquisa.
Ramessés como Khatana
À semelhança de Ramose, esta é uma alternativa da qual não se dispõe de muitas informações. Ao leste do braço pelusiano do Nilo, existem as ruínas de duas cidades: Qantir e Khatana. As escavações ali têm demonstrado um grande assentamento cananita e seus restos mostram uma grande afinidade com restos siro-palestinenses de c. 1700 a.C. a 1500 a.C., que foram encontrados em Tell el-Rataba, a bíblica Pithom.
A transliteração do hieróglifo usado para se referir a essa cidade é R3-mtny, que, segundo Shanks, pode ser projetado numa língua semítica como Ramezen.
Durante as escavações dirigidas pelo austríaco Manfred Bietak, uma inscrição fragmentada com o nome Horemhab foi encontrada. Isso é significativo, já que este é o último faraó da XVIII dinastia. Podemos supor que houve alguma habitação em Khatana no período da XVIII dinastia, esperando é claro por novas descobertas que corroborem a historicidade do relato bíblico.
Ramessés como um anacronismo
Essa é uma das opiniões mais comuns entre os acadêmicos mais conservadores. A idéia básica desta opinião é a de que um copista posterior substituiu um nome antigo por um mais recente.
É importante lembrar que o nome Ramessés não é usado no Pentateuco no sentido cronológico. Em Gênesis 47:11, por exemplo, está escrito que Jacó e seus filhos foram colocados na terra de Ramessés. Isso implica que a família de José desceu para o Egito no período do faraó com esse nome? De maneira nenhuma, antes, o nome deve ser entendido como uma atualização do texto.
A menção do nome Ramessés não é um indício forte o bastante para a localização do Êxodo na XIX dinastia. Se o Êxodo ocorreu em 1300 a.C., quando Móisés estava com 80 anos, e se o trabalho na cidade Ramessés ocorreu antes do nascimento de Moisés, temos que admitir que o nome Ramessés era comum antes dos chamados faraós ramessidas, e que a cidade não está necessariamente ligada a nenhum deles.
Em Genesis 14:14 temos um exemplo semelhante. Ali é mencionada uma cidade cujo nome era Dan. O curioso é que na época de Abraão ela não se chamava Dan, mas sim Laish (cf. Jz 18:29) ou Leshem (cf. Js 19:47). O nome Dan foi usado muito tempo depois, na época dos juízes. Ramessés pode ser entendido da mesma forma.
Apesar de ser uma alternativa aparentemente muito válida para esta pesquisa, ela não está isenta de pontos fracos. O Antigo Testamento está repleto de exemplos de anacronismos, mas sempre quando o nome da cidade na época do copista é mencionado, o nome anterior a ele também é introduzido no texto (cf. Gn 28:19; Js 15:15; Jz 1:23).
Um exemplo de anacronismo na História é a referência à Palestina nos dias de Jesus, sendo que na época de Cristo não havia Palestina, já que o termo foi criado pelo Imperador Adriano, a partir do ano 135 d.C.
Ramessés e o vizir Ramose
Ramose foi um vizir, ou seja, um cargo semelhante ao de primeiro-ministro, hoje. Ele viveu durante os reinados de Amenhotep III e Akhnaten. A principal fonte de conhecimento a respeito dele é a sua própria tumba, a TT55 (Tumba de Tebas nº 55). Apesar de Ramose ter vivido cem anos depois da data bíblica do Êxodo, seu nome era comum desde a época dos hycsos.
Gleason Archer Jr. liga o nome Ramose à cidade Ramesses de Êxodo 1:11. A semelhança na escrita para ele é significativa, já que o nome Ramose em egípcio antigo (r m s) tem uma grafia muito próxima do hebraico rm‘s.[25] Porém, lemos no próprio texto que a cidade foi construída para Faraó, não para um nobre ou vizir. Além disso, carecemos de exemplos de vizires no Egito antigo que se auto-homenageavam por meio de “cidades”. Ramose não parece ser uma alternativa satisfatória em nossa pesquisa.
(Por Luiz Gustavo S. Assis)
Um segundo grupo defende data mais recente, algo em torno de 1300 a.C., exatamente no período do faraó Ramsés II, que viveu na XIX dinastia e é um dos monarcas mais conhecidos na história egípcia. Número significativo de pesquisadores do Antigo Testamento recorrem a Êxodo 1:11 para defender o Êxodo como tendo ocorrido na XIX dinastia,[7] onde é dito que os israelistas construíram duas cidades celeiros para o faraó: Pitom e Ramessés.
Entre as datas, temos um lapso de aproximadamente 150 anos. Como harmonizar as informações? A mera menção do nome Ramessés, em si, é um indicativo do Êxodo na XIX dinastia?
Ramessés como a Per-Ramesse egípcia
Per-Ramesse é uma abreviação do nome Per-Ramesse mry ‘Imn ‘aa nehtw, “residência de Ramses, amado de Amon, o grande Vencedor”. O primeiro a sugerir essa possibilidade foi H. Brugsch, em 1875. Outra versão do nome pode aparecer como Pi-Ramesse. Os estudos arqueológicos têm lançado luz considerável sobre o histórico de Per-Ramesse. Inscrições egípcias informam que ela foi fundada por Seti I, o segundo faraó da XIX dinastia, e concluída pelo seu filho Ramsés II. Essa cidade foi a capital dessa dinastia, e tem sido identificada com Tanis e/ou Qantir. Vejamos brevemente essas duas identificações, começando com Tanis.
O primeiro a sugerir que a cidade Per-Ramesse estava localizada em Tanis foi novamente H. Brugsch, em 1872. Segundo Siegfried J. Schwantes, após a expulsão dos Hiksos, a cidade de Ávaris teve seu nome mudado para Tanis e aparece no Antigo Testamento com o nome Zõa (cf. Nm 13:22; Sl 78:12 e 43).[14] A declaração em parte é verdadeira, porém, o momento onde Ávaris é identificada com Tanis é questionável.
Tanis é a atual San el-Hagar e teve seus primeiros trabalhos feitos por Auguste Marriette (1860-1880), posteriormente por Flinders Petrie (1883-1886) e de forma significativa por Pierre Montet (1921-51). Ali foram encontrados vários templos dedicados às divindades Amum, Ptah, Re, etc., mas o palácio real de Ramsés II não foi encontrado. A identificação de Tanis com a Per Ramesse egípcia torna-se mais difícil ainda se levarmos em consideração as pesquisas posteriores ao trabalho de Montet. Os objetos encontrados lá, ou seja, em Sane l-Hagar, foram colocados ali posteriormente para construções, não no período do faraó Ramsés II. William Shea afirma que não há nenhuma confirmação arqueológica de habitação em Tanis antes da XXI dinastia, c. 1100 a.C.
Sobre Qantir a situação é mais harmoniosa. Qantir fica 17 km ao sul de San el Hagar. Mahmud Hamza foi o primemiro a escavar Qantir em 1928. As descrições de Per Ramesse que temos disponíveis no papiro Anastasis III, a saber, a fertilidade do campo, a existência de uma rota por terra e outra pelo mar para a Ásia e a presença de um palácio de Ramsés II, correspondem ao campo geográfico de Qantir.
Seu nome atual é Tell el-Dab’a e foi escavada por Manfred Bietak, diretor do Austrian Archaeological Institute, em meados da década de 1950. Os restos de ocupação dessa cidade por volta das dinastias XII e XIII revelam um fim por meio de uma grande e violenta destruição. Após a destruição, três estratos dos hyksos, sendo que o terceiro e último revela outra destruição violenta. Esta última pode ser relacionada com o início da XVIII dinastia, quando o faraó Ahmose expulsou os governantes semitas do Delta. Evidências apontam para o fato de que os faraós desta dinastia (XVIII) não tenham usado essa cidade, mas na dinastia seguinte (a XIX) ela foi reconstruída.
De acordo com Hershel Shanks, editor da Biblical Archaeology Review, a identificação da Ramessés bíblica com a Per-Ramesse egípcia é impossível foneticamente. Fontes egípcias nunca se referiram a essa cidade com o nome real de Ramessés, sozinho, antes, sempre é mencionada com a palavra egípcia pr (casa), ou seja, Per-Ramesse. A mesma opinião é defendida por E. Uphill e D. Cameron Alexander Moore.
Montet contra-argumenta a ausência do prefixo Per ou Pi no nome Ramesses. Para ele, esse é um fenômeno comum no texto veterotestamentário. Temos como exemplo o nome Baal-Meon, em Números 32:38, e Bet-Baal-Meon, em Josué 13:17, ou seja, a ausência do prefixo Bet (casa). Para ele, nomes puramente semíticos ou hebraicos podem, sim, ter tal ausência.
Porém, é importante lembrar que boa parte das cidades egípcias começadas com o prefixoPi ou Per, mencionadas nas páginas do Antigo Testamento (cf. Nm 33:8[20]; Ez 30:17) não o perderam. Se a Per Ramesse egípcia é a Ramessés bíblica, por que seu prefixo não aparece no texto? Per-Ramesse, portanto, não parece ser uma alternativa satisfatória para nossa pesquisa.
Ramessés como Khatana
À semelhança de Ramose, esta é uma alternativa da qual não se dispõe de muitas informações. Ao leste do braço pelusiano do Nilo, existem as ruínas de duas cidades: Qantir e Khatana. As escavações ali têm demonstrado um grande assentamento cananita e seus restos mostram uma grande afinidade com restos siro-palestinenses de c. 1700 a.C. a 1500 a.C., que foram encontrados em Tell el-Rataba, a bíblica Pithom.
A transliteração do hieróglifo usado para se referir a essa cidade é R3-mtny, que, segundo Shanks, pode ser projetado numa língua semítica como Ramezen.
Durante as escavações dirigidas pelo austríaco Manfred Bietak, uma inscrição fragmentada com o nome Horemhab foi encontrada. Isso é significativo, já que este é o último faraó da XVIII dinastia. Podemos supor que houve alguma habitação em Khatana no período da XVIII dinastia, esperando é claro por novas descobertas que corroborem a historicidade do relato bíblico.
Ramessés como um anacronismo
Essa é uma das opiniões mais comuns entre os acadêmicos mais conservadores. A idéia básica desta opinião é a de que um copista posterior substituiu um nome antigo por um mais recente.
É importante lembrar que o nome Ramessés não é usado no Pentateuco no sentido cronológico. Em Gênesis 47:11, por exemplo, está escrito que Jacó e seus filhos foram colocados na terra de Ramessés. Isso implica que a família de José desceu para o Egito no período do faraó com esse nome? De maneira nenhuma, antes, o nome deve ser entendido como uma atualização do texto.
A menção do nome Ramessés não é um indício forte o bastante para a localização do Êxodo na XIX dinastia. Se o Êxodo ocorreu em 1300 a.C., quando Móisés estava com 80 anos, e se o trabalho na cidade Ramessés ocorreu antes do nascimento de Moisés, temos que admitir que o nome Ramessés era comum antes dos chamados faraós ramessidas, e que a cidade não está necessariamente ligada a nenhum deles.
Em Genesis 14:14 temos um exemplo semelhante. Ali é mencionada uma cidade cujo nome era Dan. O curioso é que na época de Abraão ela não se chamava Dan, mas sim Laish (cf. Jz 18:29) ou Leshem (cf. Js 19:47). O nome Dan foi usado muito tempo depois, na época dos juízes. Ramessés pode ser entendido da mesma forma.
Apesar de ser uma alternativa aparentemente muito válida para esta pesquisa, ela não está isenta de pontos fracos. O Antigo Testamento está repleto de exemplos de anacronismos, mas sempre quando o nome da cidade na época do copista é mencionado, o nome anterior a ele também é introduzido no texto (cf. Gn 28:19; Js 15:15; Jz 1:23).
Um exemplo de anacronismo na História é a referência à Palestina nos dias de Jesus, sendo que na época de Cristo não havia Palestina, já que o termo foi criado pelo Imperador Adriano, a partir do ano 135 d.C.
Ramessés e o vizir Ramose
Ramose foi um vizir, ou seja, um cargo semelhante ao de primeiro-ministro, hoje. Ele viveu durante os reinados de Amenhotep III e Akhnaten. A principal fonte de conhecimento a respeito dele é a sua própria tumba, a TT55 (Tumba de Tebas nº 55). Apesar de Ramose ter vivido cem anos depois da data bíblica do Êxodo, seu nome era comum desde a época dos hycsos.
Gleason Archer Jr. liga o nome Ramose à cidade Ramesses de Êxodo 1:11. A semelhança na escrita para ele é significativa, já que o nome Ramose em egípcio antigo (r m s) tem uma grafia muito próxima do hebraico rm‘s.[25] Porém, lemos no próprio texto que a cidade foi construída para Faraó, não para um nobre ou vizir. Além disso, carecemos de exemplos de vizires no Egito antigo que se auto-homenageavam por meio de “cidades”. Ramose não parece ser uma alternativa satisfatória em nossa pesquisa.
(Por Luiz Gustavo S. Assis)
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