Antes de adentrarmos na leitura comentada do Evangelho de Mateus (Mt), que é o propósito do percurso que hoje começamos, apresentaremos, em três estudos, sua obra e mensagem.
Embora tenha sido Marcos (Mc) o verdadeiro precursor do gênero literário conhecido como Evangelho, foi Mt paradoxalmente que acabou obtendo o primeiro lugar no cânon neotestamentário. Durante séculos, de fato, o escrito de Mt foi considerado o mais antigo dos quatro Evangelhos, o que explica sua precedência no cânon – seguido de Marcos (Mc), de Lucas (Lc) e de João (Jo).
A ideia de que Mt era o mais antigo dos Evangelhos descansava sobre o testemunho de Eusébio de Cesareia (275-339 dC.) que, na sua História Eclesiástica (VI,25,4), alude a um suposto protótipo hebraico (na verdade, aramaico). A existência desse protótipo, no entanto, parece pouco provável, uma vez que, a partir das características do grego em que foi escrito o Evangelho de Mt, pode-se concluir que se trata de um texto original e não de uma tradução.
Além do primado canônico, a obra mateana possui um segundo primado com relação aos outros Evangelhos. Trata-se, mais precisamente, de um “primado catequético”. A completude do texto, o espaço concedido aos discursos de Jesus, a preocupação pela vida comunitária e a capacidade pedagógica do autor fizeram como que, na práxis catequética da Igreja e na sua pregação, fosse Mt o Evangelho mais utilizado – e também o mais citado. Isso explica porque, existindo duas ou mais versões de um mesmo episódio, a do Primeiro Evangelista, assim como é também conhecido o Evangelho de Mt, costuma prevalecer na memória do povo. Vejamos, por exemplo, o célebre relato do “jovem rico”. Só Mt fala de um “jovem” (cf. Mt 19,20), diferentemente de Mc e de Lc que, não explicitam, mas dão a entender que a juventude do protagonista era coisa do passado (cf. Mc 10,17-31; Lc 18,21). No entanto, para o povo – e até para nossos pregadores! – o relato trata sempre do “jovem rico”.
À prioridade na disposição do cânon e ao primado catequético, deve-se acrescentar finalmente um terceiro tipo de primazia, desta vez, de ordem litúrgica. De fato, até o Concílio Vaticano II, o uso do texto mateano prevalecia na liturgia dominical.
Pelos motivos indicados – aos quais acrescentamos o fato de ser o único Evangelho a utilizar o termo “Igreja” (cf. Mt 16,18; 18,17) –, e após séculos de incontestável predomínio, não é de se estranhar que o Evangelho de Mt ganhasse o título de “O Evangelho Eclesial”.
Autor e destinatários
Embora identificado desde cedo com “Mateus, o publicano” (cf. Mt 9,9) ou com “Levi, filho de Alfeu” (Mc 2,13-14),o autor, na verdade, permanece anônimo. Algumas marcas deixadas no texto, contudo, permitem identificar com bastante aproximação o perfil do evangelista. Trata-se, com toda probabilidade, de um cristão procedente do judaísmo e versado nas Escrituras. O uso frequente de semitismos– com destaque da expressão, tipicamente mateana, “Reino dos Céus” – e as inúmeras e primorosas citações – diretas ou indiretas – do Antigo Testamento (AT) excluem toda dúvida quanto à origem de Mt.
E os destinatários do escrito? O que podemos dizer deles? Como Mt, também seu interlocutor principal, isto é, a comunidade à qual dirige, em primeiro lugar, seu Evangelho provém do mundo judaico. Trata-se – como veremos mais adiante – do judaísmo reunido em torno do Ressuscitado e, finalmente, expulso das Sinagogas.
Contexto
Quando o Primeiro Evangelho foi escrito, o judaísmo, em cujo universo de significados estavam inseridas as primeiras comunidades cristãs – particularmente a mateana –, vivia um dos períodos mais turbulentos da sua história. O saldo da guerra judaico–romana (66-135 dC.) era, em todo sentido, desolador e o futuro apresentava-se incerto. Jerusalém, a Cidade Santa, tinha sido arrasada no ano 70 e, com ela, o Templo, o sacerdócio e boa parte do mundo conhecido por Jesus e seus discípulos. Era literalmente o “fim do mundo” ou, melhor, de “um mundo”. A esses acontecimentos últimos referem-se os evangelistas nos discursos chamados de “escatológicos” (cf. Mt 24–25; Mc 13; Lc 19,41-44).
Uma incógnita, peremptória e angustiante, levantava-se para o povo da Aliança: Como sobreviver? Ou, dito de outro modo: Qual era o núcleo, o coração, a medula da própria identidade? Identificava-se esse núcleo com o Templo – já desaparecido – ou ia além? Repensar a própria identidade era, pois, questão de sobrevivência.
Foi naquele obscuro horizonte que vieram à luz o Evangelho de Mc, primeiro (aproximadamente 70 dC.), e o Evangelho de Mt, depois (aproximadamente 80 d.C.). Como parte desse povo, abalado e confundido pelos últimos acontecimentos, ambos os evangelistas deverão enfrentar o sofrimento e a perplexidade das comunidades destinatárias de seus Evangelhos, assim como as incógnitas que esse sofrimento colocava.
Nessas circunstâncias, Mc– contemporâneo da guerra com Roma – levanta uma pergunta básica, crucial: “Quem é Jesus?”. Era preciso, de fato, começar por esclarecer a identidade do Mestre. A resposta de Mc foi igualmente decisiva para a comunidade dos seguidores: Jesus é o Cristo, o Filho de Deus (cf. Mc 1,1),o messias inesperado, o Servo Sofredor (cf. Mc 8,31;9,30-32; 10,32-34; Is 52–53) que caminha para Jerusalém seguido de seus discípulos (cf. Mc 10,32).
Uma década depois, quando o Evangelho de Mt aparece, a pergunta outrora levantada por Mc adquire, na comunidade mateana, um foco diferente. Ou, melhor, à pergunta pela identidade de Jesus – que Mt conserva e responde desde sua própria teologia – acrescenta-se uma outra, também urgente e derivada da anterior: “Quem somos nós?”. Trata-se, no fundo, da mesma pergunta à qual, uma vez desaparecido o Templo, todas as comunidades judaicas, em especial as palestinenses, tiveram que responder. Ao final das contas, o cristianismo das origens, ainda que encontrasse em Jesus Cristo seu radical fundamento, sabia-se devedor, continuador e membro do Povo da Aliança, de cujas Escrituras continuava-se alimentando e de cujo culto ainda participava – mesmo que celebrando, na intimidade das casas, a ceia do Senhor.
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