Em 30 de outubro de 1207 a. C. aconteceu um eclipse anular sobre a antiga Canaã
Está circulando há cerca de 2.500 anos e deve ter sido lida por milhões e milhões de pessoas. Mas a primeira menção a um eclipse solar tinha passado despercebida até agora. Em uma pesquisa que combina análise linguística de idiomas milenares, antigos escritos astronômicos da Babilônia, estelas (pedras com inscrições) do Egito dos faraós e modernos cálculos da maquinaria celeste, cientistas britânicos acreditam ter encontrado na Bíblia o primeiro registro de um eclipse solar anular.
Deixando de lado a historicidade da Bíblia, ao longo dela há muitas passagens históricas contando a evolução dos israelitas. A arqueologia e a história comparada confirmaram a existência de muitos personagens, lugares e fatos históricos, ao mesmo tempo em que descartaram muitos outros míticos. Um desses personagens é Josué, profeta tanto para judeus quanto para cristãos e muçulmanos, e caudilho e sucessor de Moisés à frente dos hebreus. Josué foi, de acordo com a tradição bíblica, aquele que finalmente conquistou a terra prometida e a dividiu entre as 12 tribos. Suas peripécias e muitas guerras foram registradas no livro homônimo do Antigo Testamento.
No Livro de Josué (10:12-13), lê-se a seguinte passagem:
“Josué falou ao Senhor no dia em que ele entregou os amorreus nas mãos dos filhos de Israel, e disse em presença dos israelitas:
«Sol, detém-te sobre Gibeão, e tu, ó Lua, sobre o vale de Ajalon».
E o Sol se deteve e a Lua parou, até que o povo se vingou de seus inimigos.
Isto está escrito no Livro do Justo. E, de fato, o Sol parou no zênite e não se moveu durante quase um dia inteiro”.
Lido ao pé da letra, o relato é tão mítico como a separação das águas do Mar Vermelho por Moisés. Mas um grupo de pesquisadores britânicos acredita que a leitura literal esconde o que realmente aconteceu. As várias traduções modernas do conteúdo bíblico partem da primeira tradução, do hebraico e do aramaico para o grego. Talvez tenha sido aí que se perdeu o significado real das palavras até ficar no que parece dizer: que a Lua e o Sol pararam.
“Mas indo ao texto hebraico original, pensamos que outro possível significado seria que o Sol e a Lua deixaram de fazer o normalmente fazem: pararam de brilhar”, diz o pesquisador da Universidade de Cambridge e coautor da pesquisa, Colin Humphreys, um apaixonado por colocar a lupa da ciência na Bíblia. Concretamente, o texto original usa as palavras hebraicas dôm e ‘amad para designar o que o Sol e a Lua fizeram, respectivamente. A primeira tem vários significados, de estar em silêncio a emudecer, passando por permanecer imóvel. A segunda significa tanto deter-se quanto parar ou manter.
Para ajudar essa alternativa, os autores do estudo, publicado pela revista Astronomy and Geophysics, ressaltam que a palavra dôm compartilha raiz com termos astronômicos referentes a eclipses encontrados em tabuletas babilônicas da mesma época. “Nesse contexto, as palavras hebraicas poderiam se referir a um eclipse solar, quando a Lua passa entre a Terra e o Sol e este parece parar de brilhar”, observa Humphreys. Em particular, aposta em um eclipse anular, no qual o satélite não consegue esconder toda a estrela, deixando ver uma espécie de anel de fogo.
Estela do faraó Merneptah menciona uma campanha militar contra os israelitas na antiga Canaã, na época de Josué WELLCOME IMAGES
Outra prova circunstancial que os pesquisadores colocam sobre a mesa tem a ver com a historicidade da presença de Josué e dos israelitas nas terras de Canaã há 3.200 anos. Essa parte da história é confirmada na estela de Merneptah, um longo texto escrito em um bloco de granito é conservado no Museu Egípcio do Cairo. Merneptah, filho do faraó Ramsés II, o Grande, reinou entre 1213 e 1203 a. C., de acordo com as cronologias mais aceitas. A estela, gravada no quinto ano do seu reinado, registra como Merneptah teve que enviar tropas a Canaã para ajudar vários de seus feudos que estavam sendo assediados pelos israelitas. São as guerras que o Livro de Josué reúne, embora ambos os textos não coincidam em relação a quem ganhou.
Delimitados os fatos e os personagens históricos, os pesquisadores lançaram a máquina de calcular eclipses, algo não tão simples como se acredita. “Podemos calcular eclipses futuros ou passados. Mas quanto mais voltamos no tempo, mais temos de levar em consideração as mudanças na velocidade de rotação da Terra”, explica o físico britânico. O movimento do planeta sobre si mesmo não é constante. “Somente nos últimos 20 anos conseguimos fazer esses cálculos para eclipses realmente antigos”, acrescenta Humphreys.
As variações da velocidade de rotação da Terra complicam o cálculo de eclipses passados e futuros
De acordo com suas estimativas, o único eclipse anular visível em Gibeão, a poucos quilômetros a nordeste de Jerusalém, entre 1500 e 1050 a. C. aconteceu (seguindo o calendário atual) às 15h27 de 30 de outubro de 1207 a. C. O Sol ainda deveria estar parcialmente eclipsado no crepúsculo, às 17h38. Durante a fase central do eclipse, a Lua cobriu até 86% da área do disco solar, reduzindo a visibilidade a um décimo da habitual. A passagem da Bíblia não mente, embora exagere um pouco.
Se a data for aceita pela comunidade científica, seria o registro mais antigo de um eclipse solar. Embora existam referências a pelo menos outros três possíveis eclipses anteriores ao ano 1000 a. C. em uma lenda chinesa, uma tabuleta da Mesopotâmia ou na Odisseia de Homero, nenhuma delas resistiu aos cálculos astronômicos. É preciso avançar até 700 a. C., quando os chineses começaram a registrar os eclipses. Na época, os assírios os gravavam em tabuletas de argila.
Esses registros são fundamentais para a história da Astronomia, mas também para fixar outros eventos da história. O eclipse solar de 15 de junho de 763, visto sobre as terras da Mesopotâmia, serviu para datar grande parte da história do Oriente Médio. Agora, a passagem do Livro de Josué poderia ajudar a esclarecer outros 500 anos de história antiga, começando pelas cronologias hebraica e egípcia.
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